NEOGOLPISMO E VIOLAÇÃO DA ORDEM DEMOCRÁTICA NO SUBCONTINENTE
Rodrigo Medina Zagni
Historiador e analista de Relações Internacionais
Núcleo Guaianases do PSOL
Não é necessário profundo estudo sobre a história latino-americana para que se perceba a partilha de destinos que entrelaça o desenvolvimento histórico de várias de suas sociedades. Partilhamos o colonialismo europeu primordialmente na forma da dominação ibérica, da qual se desdobram os modelos lusófono e espanhol; engendramos os processos emancipacionistas, nas formas das lutas independentistas no caso das repúblicas hispano-americanas e das reformas institucionais acordadas no caso primordialmente brasileiro; os fenômenos do caudilhismo e do coronelismo nas recém-nascidas repúblicas da América; a penetração do capital estrangeiro e o assédio primeiro europeu, depois norte-americano; os golpes e as ditaduras militares financiadas pelo imperialismo estadunidense no contexto da Guerra Fria; a luta armada e a guerra de guerrilha que marcaram a sangrenta história de resistência contra os truculentos e assassinos regimes militares; o subdesenvolvimento e a dependência; a redemocratização, a abertura política e o gosto amargo das anistias dadas aos torturadores e assassinos fardados; os resultados catastróficos dos experimentos neoliberais acordados no Consenso de Washington e o decorrente desmonte do Estado de bem-estar social no subcontinente. Não apenas porque, como dito, tratam-se de destinos partilhados, mas em razão do princípio socialista da solidariedade entre os povos, que guardamos, deve nos preocupar uma nova forma golpista que se apresenta no continente americano contra um governo de caráter progressista.
Refiro-me ao “golpe branco” praticado no Paraguai, perpetrado pelas forças conservadoras no congresso e que destituiu, literalmente de um dia para o outro, o governo do presidente Fernando Lugo.
Apesar das gritantes diferenças, há paralelos importantes nas relações entre Brasil e Paraguai e que nos fazem interessados no processo golpista que ali teve curso. Muito diferente da nossa dimensão continental, tanto em termos territoriais quanto demográficos, o Paraguai é pouco maior que o Estado de Goiás, distribuindo uma população de 6,5 milhões de habitantes por 406,7 mil quilômetros quadrados. Sua condição de subdesenvolvimento, ostentando uma das rendas per capitas mais baixas do subcontinente (3,2 mil dólares por ano, enquanto o Brasil soma 12,4 mil) é também historicamente determinada: lembremo-nos que o Exército Brasileiro levou a cabo o morticínio de cerca de 1/3 da população masculina paraguaia, culminando na própria legalização da poligamia numa tentativa desesperada de recompor sua população e força produtiva, após a encarniçada Guerra do Paraguai de que tanto se orgulham as narrativas históricas tradicionais, tanto quanto a positivista História Militar no Brasil. A própria História do Brasil, segundo nos recorda Mauro Santayana, registra tentativas golpistas semelhantes na forma de rebeliões parlamentares: em 1954 contra Getúlio Vargas; 3 vezes contra Juscelino Kubistchek; contra Jânio Quadros e, por fim, aquela que culminou na deposição de Jango, em 1964, inaugurando o tenebroso período ditatorial militar brasileiro.
A importância da região em termos estratégicos e geopolíticos é imensa. Se considerarmos a Tríplice Fronteira (região fronteiriça entre Argentina, Brasil e Paraguai), temos o ponto central que interliga a região mais densamente povoada e industrializada do subcontinente, além do potencial hídrico e energético guardado pelo Aquífero Guarani, pelas cataratas do Iguaçú e pela Usina de Itaipú.
O Paraguai ainda depende essencialmente do comércio que mantem com o Brasil, para onde envia 50% de suas exportações, além da venda de parte significativa da energia produzida em Itaipú e que é responsável pela estabilidade de sua balança comercial.
Para compreendermos a natureza desse novo tipo golpista, é preciso fazer um breve recuo ao período em que Lugo ascendeu ao poder, em 2008, contabilizando 41% dos votos válidos e pondo termo a mais de meio século de governança do Partido Colorado.
Lugo tem uma longa trajetória política que se confunde, e muito, com sua vida religiosa. Ex-bispo católico, notabilizado pela imprensa por ter sido pai mais de uma vez enquanto ainda era membro efetivo da Igreja, Lugo é adepto da “Teologia da Libertação”, leitura religiosa dos princípios fundacionais do cristianismo que pressupõe uma missão libertadora e emancipadora das sociedades humanas a ser ultimada por uma Igreja encarnada na missão de realizar o “Reino de Deus” na Terra, e não apenas num “Paraíso Celestial”; envolvida portanto na transformação das sociedades, em defesa dos pobres da Terra e almejando a condição de justiça social que redimiria a própria humanidade. Isso fez com que Lugo se aproximasse de importantes movimentos sociais de esquerda, atuando mais incisivamente nos movimentos de luta pela terra, organizados por trabalhadores rurais.
É preciso dizer que, adepto da Teologia da Libertação e próximo do movimento de trabalhadores rurais sem terra, Lugo já poderia contabilizar dois poderosos inimigos: a aristocracia fundiária paraguaia, aliada ao capital internacional; e a própria Igreja que tem na figura de Joseph Alois Ratzinger, o Papa Bento XVI, seu maior perseguidor, basta lembrar ter sido ele que excomungou, quando ainda Cardeal, um dos fundadores do movimento, o brasileiro Leonardo Boff.
Ao ser eleito presidente, contando com a oposição portanto da Igreja e da elite fundiária paraguaia, Lugo interrompeu um período de 6 décadas de hegemonia do Partido Colorado, incluindo os 35 anos de uma das mais sanguinárias ditaduras militares latino-americanas, liderada por Alfredo Stroessner. Apesar do significativo apoio popular, que lhe permitira ganhar a presidência, Lugo ganhava ainda mais poderosos e numerosos inimigos políticos, anulando nas casas do Legislativo paraguaio qualquer condição de governabilidade.
Sem nunca ter tido maioria no Congresso, o governo de Lugo se sustentava precariamente a partir de uma coligação desenhada com o PLRA (Partido Liberal Radical Autêntico), de seu vice-presidente Federico Franco, esta que se rompeu em 2011, pondo o governo de Lugo em rota de colisão com absolutamente todas as demais forças políticas desde muito incrustradas no Estado paraguaio.
O golpe orquestrado e ultimado pelos parlamentares de oposição, avassaladora maioria nas casas do Legislativo paraguaio, iniciou-se no dia 21 de junho quando a Câmara dos Deputados aprovou o processo de impeachment por 73 votos favoráveis e apenas 1 contrário; e teve seu desfecho no dia seguinte, sexta-feira, 22 de junho, quando por 39 votos favoráveis e 4 contrários no Senado (onde seriam necessários 30 dos 45 votos possíveis), decidiu-se pela cassação de seu mandato.
A acusação era a de que sua administração apresentava um “fraco desempenho”, o que ficaria demonstrado em 5 episódios distintos: 1) as 17 mortes (11 trabalhadores rurais sem-terra e 6 policiais) havidas no conflito do dia 15 de junho, na fazenda de propriedade de um grande latifundiário, membro da oposição, em Curuguaty, no departamento de Canindeyú, a 250km de Asunción e próximo à fronteira com o Brasil; 2) as manifestações, em 2009, de setores de esquerda no Comando de Engenharia das Forças Armadas; 3) os conflitos em Nacunday, em 2012, opondo trabalhadores rurais sem-terra e fazendeiros e no qual intervieram tropas federais; 4) a “falta de vontade política” para combater os guerrilheiros do “Exército do Povo Paraguaio” (EPP); 5) a ratificação do Protocolo de Ushuaia II, de dezembro de 2011, e cujo princípio de solidariedade possibilita a intervenção em caso de uma democracia latino-americana ser posta em perigo.
Claramente, o Parlamento esperava, após terem provocado a saída de Carlos Filizzola, Ministro do Interior, e de Paulino Rojas, Chefe de Polícia, que com a abertura do processo de impeachment Lugo renunciasse, o que não ocorreu. A Igreja Católica, tradicional aliada da elite fundiária na América Latina, chegou a pedir, nas palavras do bispo Claudio Giménez, secretário-geral da “Conferência Episcopal Paraguaia” (CEP) a renúncia de Lugo, em nome da segurança nacional.
Ao então presidente, o Senado, convertido em “juizado político”, concedeu apenas 2 horas para a apresentação de sua defesa, após um período de 16 horas para sua preparação. Ainda assim, todas as acusações foram negadas, tentando-se demonstrar não ter havido o uso inadvertido das Forças Armadas ou negligência no combate à violência. De qualquer forma, a acusação que pesou contra Lugo manifestava uma claríssima axiologia: as Forças Armadas devem ser mobilizadas, em lutas sociais em torno de questões agrárias, sempre em prol dos fazendeiros (esses que já possuem, em número considerável, milícias particulares, evidentemente na ilegalidade), em defesa da “sagrada propriedade”, jamais em prol do direito inalienável à propriedade (aquele mesmo proclamado por John Locke!), que portanto deve ter manifesto uso social; movimentos de luta armada devem ser exterminados pelo poder do Estado, jamais compreendidos como esferas de atuação política representativas de interesses de tipos sociais via de regra marginalizados e cujas pautas precisam ser, de alguma forma, discutidas a fim de que, abertos canais de diálogo, esses grupos possam se desarmar.
Evidentemente a defesa de Lugo, no julgamento político que se revestiu da fantasia de processo legal, não passou de um procedimento meramente simbólico, dado que sua condenação era previamente certa, o que fica demonstrado na resposta dada à última tentativa de Lugo para resistir ao processo de impeachment, a de dilatar o prazo de defesa para o limite constitucional de 18 dias, o que lhe fora negado. Sua deposição já havia sido acordada, tendo sido proclamada sem investigação das acusações feitas e sem a concessão adequada de direito de defesa ao presidente.
O prazo de recurso para autuados em infração de trânsito, no Paraguai, é muito maior do que aquele concedido para a defesa do Presidente da República, para acusações que carecem de fundamentação material.
Registre-se que na história da América Latina nunca nenhum criminoso, mesmo os mais cruéis e sanguinários, foram condenados tão rapidamente.
Lugo havia sido isolado. Sem apoio político nas casas do Legislativo, angariou como inimigos as classes médias e ricas, junto de seus representantes na mídia, nas instituições políticas e junto ao empresariado paraguaio, a Igreja e os militares. Voltando-se todas essas forças, representadas pelo Parlamento, contra Lugo, não havia meios para resistir ao golpe.
Não é de causar espanto que o primeiro Estado a reconhecer o novo governo tenha sido o Vaticano, na pessoa daquele que mais perseguiu o movimento dos teólogos e párocos considerados de esquerda na América Latina: o próprio Papa Bento XVI.
Durante o julgamento, milhares de manifestantes ocuparam a “Praça das Armas”, defronte ao Congresso, bem como defronte ao prédio da Vice-Presidência, onde se encontrava um dos principais articuladores do golpe: o vice-presidente Frederico Franco.
Demovido do poder em apenas 2 dias, faltando menos de 9 meses para o término de sua administração e sem possibilidade de reeleição, o mandato presidencial passou automaticamente à Frederico Franco, do PLRA (Partido Liberal Radical Autêntico), vice-presidente de Lugo e que com este rompera há quase um ano, pondo fim à coligação que prometia governar o Paraguai realizando reformas sociais imprescindíveis, mas que ao longo do mandato foram sendo inviabilizadas pela oposição no Congresso, paralisando qualquer projeto concreto de mudança e culminando no golpe que o destituiu.
Segundo declarou o advogado Enrique Garcia, defensor de Lugo no processo, ao jornal “Ultima Hora”, fora violado o princípio constitucional da presunção de inocência durante o procedimento-relâmpago: Lugo já havia sido condenado, na prática, antes mesmo de apresentar suas teses de defesa, as quais fora impossibilitado de preparar, por sua vez, dentro do prazo constitucional previsto. Mais do que isso, sua condenação prévia se deu pura e simplesmente por professar ideias contrárias àquelas manifestas por aqueles que o julgaram: procedimento comum aos tribunais políticos mantidos em diferentes ditaduras militares no cone sul.
A repercussão internacional foi imediata e a ação parlamentar foi nominada, de pronto, como um golpe de Estado por vários governos latino-americanos, manifestando apoio imediato à Lugo os governos de Cristina Kirchner (Argentina), Dilma Rousseff (Brasil), Evo Morales (Bolívia), Hugo Chaves (Venezuela) e Rafael Correa (Equador).
Apesar do “revestimento legal”, dado mal e porcamente na forma de “julgamento político” (um mecanismo constitucional portanto), seu modus operandi revela algo perturbador na percepção tanto de estadistas quanto das organizações internacionais: por dentro das vias institucionais e portanto das constituições liberais, procedimentos golpistas podem ser ultimados! Este foi o tipo de entendimento que levou a “União das Nações Sul-Americanas”, a Unasul, a caracterizar o processo como uma clara “violação da ordem democrática”, após chanceleres de seus países membros, que deixaram às pressas as reuniões da cúpula do desenvolvimento sustentável “Rio+20”, no Rio de Janeiro, terem embarcado para Asunción, onde acompanharam os acontecimentos dos dias 21 e 22. A delegação, que concluiu que o processo em curso no Paraguai é uma “ameaça de ruptura da ordem democrática” por ter vilipendiado uma série de preceitos legais, foi liderada por Antonio Patriota, chanceler brasileiro, à frente de representantes dos governos da Argentina, Chile, Colômbia, Equador, Peru, Uruguai e Venezuela.
A “Organização dos Estados Americanos” (OEA), também acolheu denúncia formal, impetrada pelos governos da Bolívia, Nicarágua e Venezuela em seu Conselho Permanente, acusando a ocorrência de um “golpe de Estado encoberto”. Seu presidente condenou, ad referendum da assembleia, o que caracterizou como sendo um “golpe parlamentar”. No dia 26, a organização realizou sessão extraordinária a fim de discutir a crise paraguaia, decidindo pelo envio de uma missão diplomática que de 30 de junho a 3 de julho investigou o processo de deposição.
Também se pronunciou a “Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América” (ALBA), caracterizando o processo como um “ato de desestabilização do histórico processo de transformação do país”.
No Paraguai, a “Associação das Organizações Não-Governamentais” e a “Mesa Coordenadora Nacional de Organizações Camponesas” chamaram manifestações em apoio ao governo destituído. Movimentos sociais, por toda a América Latina, também manifestaram seu repúdio ao que entenderam tratar-se de um golpe, dando seu integral apoio ao povo paraguaio.
Nos dias 28 e 29 de junho, os membros do Mercosul e da Unasul, organizações regionais que prezam pela defesa do “Estado de Direito” no continente e cujos Estados-membros estão obrigados aos tratados promulgados nesse sentido, se reuniram em Mendoza, na Argentina, para discutir a crise política no Paraguai e deliberar acerca das medidas políticas e econômicas que adotariam em contrapartida à violação perpetrada pelos parlamentares. A suspensão preventiva do Paraguai de sua filiação ao Mercosul, por infração à cláusula democrática, já havia sido acordada no dia 24; da cúpula, deliberou-se pela condição imposta pela Unasul de reconhecer apenas o governo que deverá ser eleito democraticamente nas eleições presidenciais marcadas para abril de 2013.
É importante salientar que, segundo as cláusulas dos protocolos de Ushuaia I e II, firmados pelos estados-membros do Mercosul, é possível impor sanções econômicas, suspendendo total ou parcialmente o comércio, limitando o fornecimento de serviços contratados e fechar total ou parcialmente o tráfego aéreo, contra atos de violação da legalidade democrática de seus signatários.
Também se manifestou, de forma apreensiva, a Secretária de Estado do governo dos Estados Unidos, Hillary Clinton que, em plena campanha eleitoral, não ousa fazer declarações ou tomar medidas mais drásticas, a bem do fato de a diplomacia estadunidense ter sido implicada no caso pelo site Wikileaks. Isso para dizer que o plano golpista já era conhecido pelo governo estadunidense pelo menos desde março de 2009, segundo expediente diplomático dirigido pela embaixada norte-americana no Paraguai à Washington e que dava conta da existência uma articulação parlamentar, de direita, para desfechar um “golpe democrático” contra o governo de Lugo.
Tratando-se o processo, portanto, de um golpe - perpetrado 3 anos depois do Golpe de Estado em Honduras -, resta-nos saber quem teriam sido seus articuladores, patrocinadores e beneficiados, direta ou indiretamente.
Evidentemente o governo de Lugo, apesar de duramente criticado por movimentos sociais, primordialmente de camponeses e indígenas descontentes com as promessas não cumpridas, desinteressava às forças mais conservadoras do país, essas arregimentadas nos quadros do Partido Colorado e que teria como pré-candidato, para as eleições presidenciais de 2013, o megaempresário e multimilionário Horacio Cartes.
As atenções devem estar todas voltadas portanto ao pleito eleitoral de 2013, para o qual os pré-candidatos mais bem colocados são Efrain Alegre, do Partido Liberal, com 18,3% das intenções de voto, seguido por Horacio Cartes, do Partido Colorado, com 16,8%, e por Mario Ferreira da Frente Ampla, com 15,7% (segundo pesquisa do politicólogo Marchelo Lachi).
A Frente Ampla, que conta com 6 pré-candidatos (Esperanza Martines, Fernando Camacho, Lopez Perito, Luis Bareiro Spain, Mario Ferreiro e Sixto Pereira), é composta por 20 partidos e movimentos de caráter progressista. Sua estratégia, segundo revelou Mario Ferreiro ao portal “Vermelho”, é a de apontar uma lista única de senadores, “cujo número 1 é Fernando Lugo” e, se eleito, seria posto, para exercer mandato de 5 anos, entre aqueles que o derrubaram; bem como uma candidatura presidencial única, acordada pelas forças que constituem a Frente.
Para Mario Ferreiro o cenário para as eleições de 2013 é bastante confuso, não se descartando a possibilidade inclusive de uma vitória da Frente Ampla. Aí reside o grande problema: a possibilidade de o golpe ter apenas se iniciado, desfechando-se em abril de 2013 ou na forma da fraude na apuração dos votos (algo comuníssimo na história latino-americana) ou mesmo na frustração de seu pleito, do que prescindiria uma mudança drástica na própria constituição paraguaia, para a qual o período de apenas um semestre é pouco para realizar, mas não impossível. Espera-se, também, a possibilidade de, no poder, os opositores de Lugo tentarem impedir judicialmente a candidatura de Lugo para o Senado.
Ao “Portal Vermelho”, Mario Ferreiro também esclareceu que “... o maior déficit da Frente Ampla é a falta de fiscalizadores. Os partidos tradicionais têm sempre um fiscal em cada mesa. O Paraguai tem 214 distritos. Alguns deles muito distantes das cidades. É muito custoso ter uma pessoa que controle voto por voto. (...) Então pode haver uma espécie de acordo entre os Liberais e os Colorados para dividir esses votos. Isso é um perigo. E convenhamos que parte da história desse golpe de Estado está relacionada com a urgência de controlar o Estado e, portanto, controlar o processo eleitoral até abril do ano que vem”.
Para Mauro Santayana, o golpe é resultado de uma “endemia política continental” com a qual devemos, e muito, nos preocupar. Isso porque presidentes são eleitos pela majoritária parcela da população alijada das estruturas e poder e que participam de forma nula ou marginal dos processos de desenvolvimento econômico em curso na América Latina; enquanto parlamentares são eleitos, patrocinados por oligarquias regionais e que controlam, ainda hoje, “currais eleitorais”. O caso do Paraguai desvela uma nova saída golpista encontrada por essas oligarquias à revelia dos direitos dos povos e do próprio Estado Democrático de Direito.
Ainda que utilizando seus instrumentos formais, perguntar se a ação foi legal (ou seja, se estava de acordo com o repertório jurídico-formal vigente, na formo do direito posto) em pouco nos interessa; preferimos saber se a ação foi legítima (ou seja, se corresponde aos pressupostos daquela sociedade).
Ao cabo desta breve análise, um governo que se ergue por meio da força e contra o ordenamento democrático não pode, de maneira alguma, ser considerado legítimo; corrobora este tipo golpista de estabelecimento com uma antiga tradição de violência política, abusos e injustiças, com a qual temos, urgentemente, que romper!
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“A história me precede e se antecipa à minha reflexão. Pertenço à história antes de pertencer a mim mesmo”.
RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1977, p. 39.