Olá Espinosa!
Desculpe-me por não ter lhe escrito antes; andei ocupado fingindo que a vida continuava sem você por aqui; e de fato continua, ainda que sem os seus sorrisos e sem aquelas conversas sobre os destinos do mundo e a partir das quais apresentava suas ideias.
Quero dizer que suas ideias continuam aqui no campus universitário onde nos últimos anos exerceu os seus labores, ainda que os corredores, paredes e salas tenham ficado mais cinzas e que uma densa bruma de autoritarismo político tenha se avolumado em suas cercanias, como que nos espreitando.
Mas poxa vida, amigo! Por que foi embora assim? Podia ter ficado mais um pouco e nos ensinado muito mais sobre essa densa e complexa humanidade que tanto te fascinava! Mas eu sei: o trem que te levou para o lado de lá não quis esperar…
Sei também que deve estar ocupado, colocando o papo em dia com Dodora, Chael, Lamarca, Leonel e tantos outros no mesmo vagão. Por isso não quero lhe ocupar muito tempo.
Passei apenas pra dizer que, ontem, a noite em sua homenagem foi linda! No mesmo anfiteatro em que deu suas últimas aulas estavam os seus alunos, colegas professores e muitos amigos. E como coube a mim a tarefa de dizer algo em sua homenagem, diante do perigo de a voz falhar e as ideias fugirem, diante da dor que ainda é a sua falta, resolvi fazer algo que até me envergonho em lhe dizer: escrevi minhas palavras num papel.
Como não te vi por ali, por mais que como um reflexo involuntário tivesse te procurado, vou transcrever o texto logo adiante e espero que goste, de certo que não está à altura dos seus feitos e do homem que foi!
Então, sem mais delongas, foi isso o que eu disse:
“Antonio Roberto Espinosa nasceu em São Paulo no ano de 1946 e, no decurso de uma vida, foi muitas coisas: foi jornalista, de diretor da Abril à fundador do seu próprio jornal; foi militante político, no comando das organizações armadas VPR - Vanguarda Popular Revolucionária e VAR-Palmares - Vanguarda Armada Revolucionária Palmares; foi intelectual, autor de mais de uma dezena títulos; foi professor, desde 2015 lotado no Departamento de Relações Internacionais desta Escola Paulista de Política, Economia e Negócios, no campus Osasco da Universidade Federal de São Paulo; foi pai de Julia e Luise; foi amigo de muitos; foi crítico de outros tantos; foi admirado e muitíssimo amado.
Em 1968, entendendo a grandeza histórica daquele momento, com seus 21 anos e ainda aluno do primeiro ano do curso de Filosofia da Universidade de São Paulo, às vésperas do AI-5, ajudou a organizar a greve e a ocupação da Cobrasma (a Companhia Brasileira de Material Ferroviário), então uma das maiores metalúrgicas de São Paulo naquela que seria uma das primeiras mobilizações de enfrentamento à ditadura militar.
E na luta política contra a ditadura militar de segurança nacional cerrou ombros com valorosos companheiros, entre os quais estavam Dilma Rousseff e Carlos Lamarca.
Mas sua atuação, marcada pelo eterno espírito de juventude e coragem sem igual, não passaria incólume: em dezembro de 1969, Espinosa foi preso no Rio de Janeiro e levado à São Paulo onde foi violentamente torturado.
Passou pela sede da Oban (a Operação Bandeirantes) e logo em seguida pelo DOPS (o Departamento de Ordem Política e Social), onde conheceu a face das Górgonas nas sessões de tortura que amargou.
Nos anos de cárcere passou pelo Presídio Tiradentes e pela Casa de Detenção, o Carandiru.
Dos torturadores ganhou marcas no corpo e na alma: ficou parcialmente surdo além de ter perdido parte de sua dentição. Foi obrigado a assistir à tortura de sua companheira, Maria Auxiliadora Lara Barcellos, a Dodora ou Dorinha; e assistiu também o amigo Chael Charles Schreier ser assassinado no mesmo DOPS, após ser espancado, com um derradeiro golpe de fuzil no peito.
As cicatrizes deste processo foram profundas: em 1971 Dodora foi expulsa do país e, na Alemanha, a experiência vivida de tal forma lhe assombrara que se atirou na frente de um metrô, dando cabo da própria vida.
Em 1974, com as ditas marcas (no corpo e na alma) ele saiu da prisão.
Foi diretor na editora Abril, onde permaneceu por 11 anos, presenteando-nos, dentre tantos petardos, com a coleção “Os pensadores”, da qual fora editor.
Ao deixar a Abril fundou o jornal “Primeira Hora”, um dos principais jornais da história de Osasco, a cidade que tanto amou e onde viveu até o fim de seus dias.
Em liberdade, graduou-se enfim em Filosofia pela Universidade de São Paulo já no ano de 1976. Retomou às carteiras universitárias como aluno apenas em 2005, quando especializou-se em Relações Internacionais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Doutorou-se em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, onde fora orientado por Leonel Itaussú de Almeida Melo, intelectual de primeira grandeza e também combatente das lutas políticas de outrora.
Na cidade que amava coordenou o projeto “Osasco 50”, para uma cidade mais democrática e inclusiva.
Foi professor de Política Internacional da Escola Superior Diplomática (ESD); também de Relações Internacionais e Blocos Econômicos do Centro Universitário Fieo (Unifieo) e, por fim, Professor Adjunto de Pensamento Político e Relações Internacionais nesta Escola Paulista de Política, Economia e Negócios da Universidade Federal de São Paulo, onde também foi membro das Câmaras de Pós-Graduação e de Extensão e Cultura, bem como da Comissão de Relações Internacionais.
Publicou dezenas de títulos, entre eles “Abraços que sufocam - E outros ensaios sobre a liberdade”, no ano 2000.
Morreu de câncer de pulmão em 25 de setembro de 2018, aos 72 anos, desobedecendo-nos a todos quando pedíamos tão somente que ficasse mais um pouco…
E durante todo o tratamento quimiterápico Espinosa seguiu dando aulas, militando, amando a todos e distribuindo aquele baita sorriso!
Comandante Antonio Roberto Espinosa, presente!
Maria Auxiliadora Lara Barcellos, presente!
Chael Charles Schreier, presente!
Leonel Itaussú de Almeida Melo, presente!
Que a insígnia do teu nome, não apenas no espaço do anfiteatro que se chamará ‘Professor Doutor Antonio Roberto Espinosa’, mas nos corredores e salas onde se faz o que maior prazer lhe dava: ensinar e aprender, nos sirva de inspiração para os necessários esforços pela construção de um mundo mais justo.”
E foi isso o que eu disse…
Aplaudiram bastante! Mas os aplausos não foram, de certo, para mim. Não sei se deu para escutar desde onde você está, mas foi lindo!
Sei que chego atrasado nas homenagens que muitos lhe fizeram, mas cada um tem seu tempo (e sei que você compreende); foi preciso antes disso acreditar que você, mesmo, se foi… Deixar calar um pouco mais a dor… Encher os pulmões de ar e certificar-me de que a voz não iria falhar, para que eu pudesse então falar…
E pra piorar, eu tenho depressão, o que não ajuda muito nesses momentos!
Mas é isso aí, amigo! Nos vemos logo mais adiante, quando o mesmo trem parar na minha estação… E até lá, vamos nos falando na memória que insiste em lhe eternizar!
Até logo!
Rodrigo Medina Zagni
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“A história me precede e se antecipa à minha reflexão. Pertenço à história antes de pertencer a mim mesmo”.
RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1977, p. 39.