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O lodaçal do propinoduto tucano
O lodaçal do propinoduto tucano

A Máfia dos trens em São Paulo sob a mira do Ministério Público Estadual

Rodrigo Medina Zagni

 

 

O ano de 2013 foi marcado, no cenário político, pelo levante popular assistido durante as “jornadas de junho” e que tiveram início a partir da legítima reivindicação do “Movimento Passe-Livre” pela redução da tarifa do transporte público em São Paulo. Como um rastilho de pólvora, o movimento fez explodir descontentamentos que apresentaram aos poderes estabelecidos pautas muito mais extensas para além do falido sistema de transporte público nas grandes cidades brasileiras: a educação precarizada em todos os níveis, o sucateamento da saúde pública e a falta de médicos, a insegurança pública e tantos outros reclames que constituíram pautas difusas para contingentes bastante heterogêneos; mas que fizeram nas ruas cursos mais do que intensivos de formação política, enquanto governadores acuados moviam contra manifestantes e jornalistas o mais brutal da selvageria policial.
Os trinta centavos que levaram os primeiros manifestantes às ruas de São Paulo - motivo reiteradas vezes ridicularizado pela imprensa burguesa, por “profissionais da indignação” e por stand-up comedians da mídia televisiva – em verdade acompanhavam uma pauta bastante clara que refere o direito do povo à cidade, o que impõe centralidade à discussão sobre mobilidade urbana e o modelo de concessão para o setor privado de um serviço cuja natureza é essencialmente pública, o que nos leva à pergunta elementar: quem são os beneficiários das políticas públicas para o transporte urbano em São Paulo? São os usuários ou os megaempresários do setor? E isso vale para ônibus, trens e metrô, logo, implica tanto o governo municipal quanto estadual.
Enquanto prefeito, governador e até mesmo a presidenta faziam-se de sonsos dizendo não entender o que queriam os manifestantes, para os jovens pobres e em sua grande maioria negros nas periferias da cidade de São Paulo os motivos eram claríssimos: o constante remanejamento e exclusão de linhas, a substituição de pontos cobertos e com bancos por fálicos postes de sinalização, a espera de mais de uma hora por um ônibus em péssimas condições de manutenção, lotado e que comumente deixa seus usuários no meio do caminho, as estações de metrô superlotadas, os constantes problemas técnicos nas linhas, acidentes, o número insuficiente de trens, a insegurança nas composições e nas estações onde uma variedade surpreendente de crimes é registrada... Muitos são os motivos! O péssimo serviço ofertado pela aliança Estado/capital, em benefício do capital privado e em detrimento do interesse público chegou, em São Paulo, às vias do intolerável e o poder público teve que se deparar com um levante popular cuja magnitude não anteviu.
Mal tinham terminado as grandes manifestações (em menores proporções as manifestações seguem até hoje!), os motivos do sucateamento do transporte público em São Paulo, no que se refere ao metrô e trem, começaram a ser explicados a partir de denúncias que davam conta da existência de práticas de cartel das quais teria se beneficiado o tucanato paulista, que teria estimulado tais práticas segundo apuração preliminar do Ministério Público Estadual, bem como o superfaturamento de obras que teriam levado a prejuízos de quase 1 bilhão aos cofres públicos.
Por que a população de São Paulo sofre com um dos piores e mais caros transportes públicos do mundo? As práticas de corrupção constituem um elemento explicativo fulcral nesse processo.
Quando das primeiras denúncias de corrupção envolvendo nomes do PSDB e fraudes em licitações no Metrô de São Paulo, um silêncio sepulcral reinou na mídia hegemômica, evidenciando o poder de blindagem que gozavam os políticos tucanos. Não foram poucos os escândalos que envolveram governos do PSDB e que contaram com o silêncio leniente de uma imprensa engajada e sumamente ideológica (à direita, evidentemente!): as farras nas concessões de pedágios e rodovias (durante a gestão de Mário Covas), a venda do Banespa ao Santander, os escândalos da Nossa Caixa, da FURP, da compra de medicamentos a ambulâncias, o escândalo do “Rouboanel” (durante a gestão Alckmin), e por fim o “propinoduto do tucanato paulista”.
Passadas algumas semanas, dada a sucessão de documentos que começavam a ganhar as páginas de alguns veículos da mídia impressa e sobretudo por conta de as primeiras denúncias terem sido feitas na Suíça e na Alemanha (onde o PSDB não dispõe de blindagem alguma), os telejornais passaram a referir o escândalo de uma forma bastante peculiar, ao passo da espetacularização do julgamento dos mensaleiros do PT. Para os âncoras dos principais telejornais que passavam a fazer malabarismos linguísticos no uso de um novo vocabulário político, as denúncias de corrupção e superfaturamento de obras eram referidas apenas como “denúncias de suposto cartel”, seus articuladores, intimamente ligados à administração tucana não tinham nome, eram tão somente “funcionários públicos”, sequer José Serra e Geraldo Alckmin tinham nome, CPF e RG, eram pura e simplesmente “governo do Estado”. Ao cabo de toda e qualquer reportagem televisiva, a última palavra era dada pelo governador Geraldo Alckmin que insistia no mantra: “se houve cartel, o Estado é vítima!”
Tudo para não macular a imagem daqueles que se arvoravam paladinos da honestidade e da moral na política brasileira e que pretendiam ser os beneficiários diretos da condenação e encarceramento dos condenados do mensalão, com vistas ao pleito presidencial de 2014. No entanto, o projeto desvela-se, ao término do ano de 2013, inviável! Novas denúncias reascendem o escândalo do “propinoduto do tucanato paulista” com a possibilidade de terem sido desviados dos cofres públicos quase 1 bilhão de reais.
Novos fatos vieram à tona na capital paulista com a divulgação, na terça-feira do dia 3 de dezembro, do relatório elaborado pelo Ministério Público de São Paulo a partir de investigações feitas durante um ano e meio, com tomada de 30 oitivas e cujo objeto de apuração foi o gasto, por parte do Governo do Estado de São Paulo - durante as gestões de José Serra e de Geraldo Alckmin -, de 2,87 bilhões de reais (em valores não corrigidos) com a “modernização” - leia-se reforma -, de 98 trens usados com 6 vagões cada um, ou seja, 588 vagões que têm cerca de 35 anos de uso. De acordo com a revista “Carta Capital”, o valor gasto seria suficiente para comprar 136 vagões novos! Não apenas isso, em nenhum outro metrô no mundo reformou-se trens com quase 4 décadas de operação, tanto por questões de desempenho quanto de segurança: apenas em São Paulo e sob gestão tucana!
Foi desconsiderado ainda o fato de que se tivessem sido comprados novos trens (por valores muitíssimo próximos dos gastos com a “reforma”), as composições antigas não seriam descartadas; mas vendidas. Apesar de serem “sucata”, isso porque não poderiam ser aproveitados em outro sistema, trata-se de uma sucata valiosíssima. Conforme nos esclarece o “Portal Vermelho” cada vagão pesa cerca de 33 toneladas, sendo um quarto de placas de aço inoxidável, peças de cobre e componentes eletrônicos avaliados na cifra dos milhões.
Segundo o Ministério Público, os contratos firmados para a reforma dos trens seriam ilegais e apontariam para o superfaturamento de quase 1 bilhão de reais. A ilegalidade teria sido constatada em quatro contratos lavrados entre 2008 e 2011 (José Serra era governador entre 2007 e 2010) e cujo objeto era a reforma de 98 trens componentes das linhas “1-azul” e “3-vermelha” do metrô, conforme esclareceu Marcelo Milani, promotor de Defesa do Patrimônio Público de São Paulo. A estratégia que fez com que os contratos saltassem de 1,622 bilhão (seu valor inicial) para 2,87 bilhões de reais, envolveu o seu fracionamento ilegal em 10 contratos, do que resultou um acréscimo de ilícitos 875 milhões de reais.
Os usuários ainda estão sendo lesados por conta de a reforma tirar de circulação 36 trens, dos 98 que estão sendo reformados, que ficarão parados até o próximo ano; o que não aconteceria se tivessem sido adquiridas novas composições.
Contudo, as denúncias não se limitam apenas ao superfaturamento de quase 1 bilhão (o que já seria o suficiente para um escândalo de proporções imensuráveis, caso os envolvidos não fossem figuras proeminentes do tucanato paulista); mas às práticas de cartel – já confirmadas pelo promotor Marcelo Milani - que não têm apenas o Estado como vítima; mas seu governo diretamente implicado como réu, porquanto “incentivador” da montagem do cartel - de acordo com a revista “Isto É” (em reportagem escrita por Pedro Marcondes de Moura, Sérgio Pardellas e Alan Rodrigues) -, junto das empresas Alstom e Siemens, já investigadas em outras denúncias semelhantes e que envolvem também a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM).
De acordo com reportagem do jornal “O Estado de São Paulo” (sim, isso mesmo!), as irregularidades nos contratos firmados pelo Metrô envolveriam, além da Siemens e Alstom, a gigante Bombardier e outras empresas do ramo metroferroviário.
O que comprovaria a participação da gestão tucana no ilícito é o documento fornecido pelo engenheiro Nelson Branco Marchetti, ex-diretor técnico da divisão de transportes da empresa Siemens, no qual funcionário do alto escalão do Metrô convocava os diretores de transporte das Alstom e Siemens para uma reunião com dirigentes da CPTM e da Secretaria de Transportes Metropolitanos, a fim de comporem um consórcio que concorreria à licitação de um dos contratos. Esta secretaria era dirigida, à época, por José Luiz Portella, de acordo com a revista “Isto É”, Portelinha (como é conhecido) era o “braço direito de Serra”.
Segundo o promotor Marcelo Milani, a licitação a que se referia a “convocatória” do Metrô, cujo contrato fora orçado em 708 milhões de reais e tratava do sistema de sinalização (CBTC) das linhas 1, 2 e 3 do Metrô, não teve competitividade, o que comprova a atuação do cartel que levou à vitória da Alstom, sozinha, para o fornecimento do CBTC às três linhas.
O problema é que os “contratos de modernização” de trens não foram ganhos apenas sem disputa; mas a preços bem acima daqueles estabelecidos pelo Metrô de São Paulo e envolvendo o pagamento de propina a funcionários do governo, conforme denunciou o executivo austríaco Mark Willian Gough, vice-chefe do setor de compliance (setor que disciplina regras internas de conduta multinacional) da Siemens e que reside em Munique, em depoimento dado à Polícia Federal. Segundo reportagem da revista “Isto É”, o executivo da multinacional alemã denunciou ainda que uma das contas do ex-presidente da companhia no Brasil, Adilson Primo, no paraíso fiscal de Luxemburgo e que totaliza 7 milhões de dólares, estaria relacionada à propina. Ou seja, a obtenção de contratos com o governo paulista foi objeto de negociata, do que resulta a notável precarização do setor.
Segundo matéria publicada pela revista “Isto É”, “um dos fatos que chamaram a atenção do promotor Milani foi a falta de competitividade na licitação dos quatro lotes de veículos reformados. Cada um deles foi disputado por um único consórcio, que reunia uma ou mais empresas. Ao final, sagravam-se vencedores com propostas acima dos valores estabelecidos pelo Metrô em consulta de tomada de preço feita com as próprias empresas”.
A falta de concorrência já vinha sendo questionada desde 2012 quando Eduardo Bittencourt Carvalho, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, avaliou os contratos e questionou o Metrô paulista.
A fraude é também escancarada pelo fato de uma das empresas envolvidas na reforma dos trens de São Paulo ter fechado contrato, recentemente, com o metrô de Nova Iorque para o fornecimento de trens novos. Trata-se de 300 vagões vendidos a 600 milhões de dólares, equivalentes a 1,4 bilhões de reais; enquanto em São Paulo a reforma de 588 vagões custou aos cofres públicos (ou seja, dinheiro meu e seu!) módicos 2,87 bilhões! O que chamou a atenção do Ministério Público é o fato de os trens novos, vendidos ao metrô de Nova Iorque, terem preço semelhante à reforma dos trens paulistas cuja idade é de quase quatro décadas.
O tucanato seria responsável ainda por três acidentes ocorridos nos últimos anos e que envolveram exatamente trens reformados a partir dos artifícios fraudulentos aqui descritos, demonstrando que os materiais e serviços prestados são de qualidade no mínimo questionável, além de o objeto da “modernização” (vagões com 35 anos de operação!) ser na verdade “sucata” segundo as autoridades que investigam o caso e ouvidas pela revista “Isto É”. Em 1º de dezembro de 2012 um trem se deslocou sozinho, vindo a colidir com outra composição, na Estação Jabaquara. No dia 16 de maio de 2013, dois trens colidiram na linha vermelha (a primeira colisão de trens da história da companhia!) resultando em três vítimas. No dia 5 de agosto de 2013, houve o descarrilamento de uma composição na linha vermelha, causado por um “problema” em uma das peças utilizadas na reforma. Nenhum dos eventos resultou em tragédia; mas o potencial era para tanto e se trens reformados por estas empresas - agraciadas por licitações fraudulentas e contratos superfaturados -, comprovando-se que materiais e serviços prestados seriam de qualidade inferior, envolverem-se em acidentes dos quais resulte a morte de usuários, o corrupto governo do Estado de São Paulo é diretamente responsável!
Em função disso, a Promotoria de Defesa do Patrimônio Público e Social de São Paulo enviou a Luiz Antônio Carvalho Pacheco, Presidente do Metrô, convocatória para que responda, em até 30 dias, recomendação administrativa para a suspensão dos 10 contratos que estão sendo investigados, todos em execução, dado o risco iminente que sofrem os usuários do Metrô.
Aqueles que foram tomados de surpresa com o ascenso revolucionário de junho certamente subestimaram a capacidade de indignação das classes subalternas na dura realidade brasileira; e seguem subestimando só que em escala muitas vezes maior!
Desta vez a distância é aquela que permite diferir 30 centavos de 875 milhões, e vale muito a pena ocupar as ruas por isso!


 

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“A história me precede e se antecipa à minha reflexão. Pertenço à história antes de pertencer a mim mesmo”.

RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1977, p. 39.

 

 

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